terça-feira, 12 de junho de 2007

revista VEJA junho

http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/perguntas_respostas/crise_usp/index.shtml

A mais prestigiosa instituição de ensino superior do país e uma das mais concorridas – no último vestibular, houve 142.656 candidatos para 11.682 vagas – começou a viver um drama em 3 e maio de 2007. Naquela tarde, a reitoria da Universidade de São Paulo (USP) foi invadida e ocupada por cerca de 300 de seus quase 80.600 alunos – menos de 0,5% do total. Com uma lista de reivindicações sem foco específico, o grupo ali se estabeleceu, e recebeu o apoio dos funcionários da universidade. Estes entraram em greve duas semanas depois, paralisando os serviços oferecidos à comunidade uspiana. No dia seguinte, foi a vez de uma assembléia representando os estudantes da universidade declarar que eles também estavam em greve. Por fim, no dia 23 de maio, a última categoria que permanecia ativa também cruzou os braços – os professores, por meio da Associação dos Docentes da USP (Adusp).

1. Por que alunos invadiram a reitoria?
Com o intuito de discutir uma pauta de reivindicações estudantis – algumas relacionadas a decretos sobre a administração universitária promulgados pelo governador de São Paulo, José Serra, entre janeiro e março de 2007, ou seja, dois meses antes – foi marcada uma reunião entre um grupo de alunos e a reitora da USP, Suely Vilela. Suely não compareceu, e a reitoria não enviou nenhum representante para o encontro. Em protesto, estudantes dirigiram-se ao prédio do órgão, destruíram uma porta, depredaram as placas de identificação de algumas salas do edifício, e por ali ficaram. Aproveitaram-se, desde então, da falta de pulso da reitora para retirá-los dali e da grande exposição midiática que geraram, para permanecerem no local e rejeitarem qualquer proposta de negociação. Nem um mandado de reintegração de posse expedido pela Justiça em 16 de maio comoveu os invasores. Embora os cerca de 200 ocupantes protestem contra a política educacional do governo Serra, há também uma série de outras reivindicações dispersas e oportunistas.


2. Contra o que protestam invasores e grevistas?
Tanto o grupo que tomou a reitoria quanto os funcionários e professores grevistas pedem, principalmente, a revogação de cinco decretos assinados pelo governador paulista no início do seu mandato, que reorganizam a gestão – política e financeira – das três universidades estaduais de São Paulo (além da USP, Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp; e Universidade Estadual Paulista, a Unesp). Como é comum neste tipo de manifestação, no entanto, as três categorias universitárias acrescentaram a este pedido uma série de outras reivindicações. Do aumento salarial pedido por funcionários e docentes, até a abertura dos bandejões – os restaurantes universitários que oferecem refeições subsidiadas – nos finais de semana, há exigências para todos os gostos. Os decretos de Serra funcionam apenas como ponto de convergência dos três grupos.


3. O que determinam os polêmicos decretos do governador paulista?
Um dos principais alvos das críticas é o decreto 51.460 do governador de São Paulo, que criou a Secretaria de Ensino Superior, à qual as universidades paulistas estaduais (USP, Unicamp e Universidade Estadual Paulista, a Unesp) estão agora vinculadas. Antes, elas eram ligadas à extinta Secretaria de Ciência e Tecnologia, que comandava também instituições de pesquisa como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Agora, ficaram submetidas a um órgão exclusivo, com poder teórico para implementar políticas e diretrizes próprias.
O segundo decreto mais atacado pelos manifestantes é o 51.636, que obriga as três universidades a prestar contas de seus gastos diariamente no Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e Municípios (Siafem), ferramenta disponível na internet em que o contribuinte paulista pode acompanhar o uso de seu dinheiro. Antes do decreto, esta prestação era mensal e incompleta. O mesmo decreto estabeleceu que contratos de serviços e compras de materiais e equipamentos acima de 5 milhões de reais feitos pelas universidades devem ser aprovados pelo governo. Por fim, há o decreto 51.660, que criou a Comissão de Política Salarial, vinculada diretamente ao governador do estado. Como o nome indica, ela determina as regras de política salarial para os servidores públicos.
No dia 31 de maio, Serra publicou ainda um decreto declaratório, o número 1 de sua gestão, apenas para "eliminar as interpretações reiteradamente equivocadas" sobre os textos anteriores que tratavam da autonomia universitária paulista. Este último decreto não mudou em nada o que propunham os anteriores.


4. O que é autonomia universitária?
Autonomia universitária é um princípio consagrado pela Constituição Nacional de 1988, em seu artigo 207, que estabelece que as universidades brasileiras têm o direito de decidir, por si próprias, como irão trabalhar. Seja no âmbito didático-científico, seja sobre questões administrativas e de gestão financeira e patrimonial. Esta autonomia, no entanto, não pode ser entendida como um direito de professores, alunos e funcionários de fazerem com as universidades o que quiserem. Ela é um instrumento para que as universidades possam cumprir suas funções dentro da sociedade: o desenvolvimento pessoal de seus integrantes, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, conforme dita o artigo 205 da Constituição. A autonomia universitária é uma forma de garantir que estes objetivos sejam cumpridos sem a interferência de outros interesses que não tenham relação com eles. Daí inclusive a importância da autonomia de gestão financeira e patrimonial, e não só da didático-científica – não há livre pensar se as decisões administrativas forem tomadas fora da universidade.


5. Os decretos de Serra ferem esta autonomia?
Não. Para os grevistas e invasores da reitoria da USP, a criação da Secretaria de Ensino Superior, com supostos poderes para implementar políticas educacionais próprias, é uma afronta a esta autonomia, uma vez que decisões que dizem respeito à USP poderiam, em tese, ser tomadas fora dela. No entanto, os reitores das três universidades paulistas foram a público em 17 de maio para dizer, em nota, que não viam risco à autonomia em nenhum dos decretos de José Serra. Mesmo na questão do controle financeiro foram colocados panos quentes. Uma declaração dada pelo chefe da nova secretaria, José Aristodemo Pinotti, que remanejamentos de verbas entre os três grupos orçamentários dessas universidades (pessoal, investimento e custeio) precisariam ser aprovados pelo governador, ao contrário do que acontece hoje, despertou uma celeuma no meio acadêmico. Caso isso se confirmasse, decisões corriqueiras como a de realocar dinheiro previsto para a compra de material na contratação de um novo professor seriam obrigatoriamente submetidas a Serra, burocratizando o processo. O governo se apressou em apagar o incêndio, e prometeu definir ”em entendimento com os reitores, um regime adequado de remanejamento de dotações orçamentárias, que atenda às peculiaridades de sua organização". A publicação do decreto declaratório n.º 1 em 31 de maio ratificou esta promessa, e reiterou a autonomia das universidades paulistas.


6. As universidades estaduais paulistas prestam contas de seus gastos ao governo?
Sim. Cada uma das três universidades paulistas têm maneiras próprias de apresentar seus gastos ao estado. No caso da USP, todas as operações financeiras são controladas por meio de um sistema próprio chamado Mercúrio, de onde podem ser obtidos os dados sobre o quanto é gasto com o quê. Além disso, as contas da universidade são periodicamente auditadas pelo Tribunal de Contas do estado de São Paulo, além de serem enviados balanços à Secretaria da Fazenda do estado. Há ainda, anualmente, a publicação de um anuário estatístico, que mostra ao público como é empregado o dinheiro que a USP recebe. Ademais, a prestação de contas ao Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e Municípios (Siafem) já é feita mensalmente, mas sem discriminações específicas. A partir dos decretos do governo Serra, ela passa a ser feita em tempo real, a cada centavo gasto, paralelamente àquela que já é feita pelo sistema Mercúrio.


7. A revogação dos decretos de Serra é a única reivindicação dos invasores?
Não. Mesmo que tenham funcionado como força motriz do bando que invadiu e acampou na reitoria, eles se aproveitaram da situação para apresentar uma extensa lista com dezessete exigências, boa parte delas oportunistas. Sua pauta inclui eleições diretas para reitor, contratação imediata de professores e funcionários, construção de prédios, reforma de outros, liberdade de manifestação política (panfletagem, colagem de cartazes etc.) e cultural (realização de festas e festivais), e por aí vai. Pedem também a abertura dos bandejões e a circulação de ônibus nos fins de semana, além da construção de mais 600 vagas no Crusp, o edifício para moradia na Cidade Universitária. Querem que nenhum dos invasores sofram represálias por terem tomado a reitoria, e demandam ainda o abrandamento da regra de jubilação, para que possam permanecer mais tempo na universidade.


8. Quanto custa aos cofres públicos um aluno da USP?
Segundo o Anuário Estatístico da USP de 2006, o orçamento executado em 2005 pela universidade foi de aproximadamente 1, 9 bilhão de reais, para 80.589 alunos. A simples divisão de um número pelo outro indica que, naquele ano, cada estudante custou pouco mais de 23.500 reais aos cofres públicos. Este dinheiro vem de uma parcela fixa do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) do estado – 9,57% – que é repassada às universidades de São Paulo. Em 2006, isso representou 4 bilhões de reais. Na USP, um quinto do orçamento de custeio é destinado à assistência estudantil, o que inclui moradias, subsídios à alimentação, consultas médicas, transporte e diversos tipos de bolsa de auxílio.


9. Quem sai prejudicado numa greve de estudantes?
Em 17 de maio, numa assembléia realizada à noite que reuniu ralos 2,5% do corpo discente da USP, decidiu-se que os alunos da universidade também entrariam em greve. Na prática, a paralisação aconteceu nas unidades que sempre param quando há greve estudantil: na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), na Escola de Comunicações e Artes (ECA) e na Faculdade de Educação. Nos demais departamentos, houve interrupções parciais. Os primeiros prejudicados por uma paralisação deste tipo são os próprios estudantes, que têm que replanejar todas as suas atividades letivas e alterar um calendário pré-definido e apertado. Para compensar as aulas e trabalhos perdidos, a carga horária de muitos deve dobrar quando a greve acabar. Na prática, entretanto, o que acontece é que muitos professores criam um cronograma de reposições incompleto, ou mesmo dão o semestre letivo por encerrado – aprovando até os alunos que não freqüentaram as aulas ou não produziram nenhum tipo de material a ser avaliado. Além de o poder de persuasão de uma greve estudantil ser altamente duvidoso, quem perde também, no fim, é a própria sociedade, forçada a financiar uma estrutura que não é usada para o seu devido fim. Ao exigirem ações assistencialistas cada vez mais amplas e prolongarem ao infinito sua estadia na universidade, os manifestantes tornam eterna uma fase da vida que deveria ser curta (a da graduação), e gastam recursos que poderiam estar sendo usados na abertura de novas vagas nas faculdades públicas – uma exigência dos próprios grevistas, que não se cansam de pedir a tal “universidade pública, gratuita e de qualidade para todos”.


10. Por que os funcionários entraram em greve?
Um dia antes dos estudantes, em 16 de maio, por meio do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp), os servidores da universidade – não todos – aproveitaram-se da confusão causado pela ocupação estudantil da reitoria e também cruzaram os braços. Para justificar a interrupção das atividades, uniram-se aos invasores no discurso contra os decretos de Serra. Para se afirmarem como categoria independente, reivindicaram também um aumento indiscriminado de 200 reais, e mais um reajuste salarial de 3,15% a todos os funcionários e professores da USP, Unesp e Unicamp, a título de correção pela inflação de 2006. O que pouco se falou foi que, religiosamente, em todo mês de maio, os funcionários da USP iniciam uma campanha por aumento salarial, e estão sempre prontos a entrar em greve ao menor sinal de resposta negativa. Falta-lhes apenas um pretexto, o que nunca foi difícil de se arranjar.


11. E por que os professores também o fizeram, uma semana depois?
Novamente a decisão foi tomada em uma assembléia de um órgão que representa a categoria – no caso dos professores, a Associação dos Docentes da USP (Adusp). Na ocasião, estavam presentes cerca de 300 docentes. A USP tem mais de 5.000, muitos dos quais continuaram a dar aulas. Além da crítica aos decretos do governo e do pedido de reajuste salarial de 3,15%, a categoria também apresentou pautas específicas. A Adusp pediu a retirada de um projeto de previdência do Executivo e mais investimento do estado em educação. Da parte de alguns professores, houve ainda a reclamação de que a passagem de instituições de pesquisa, como a Fapesp, para o comando da Secretaria de Desenvolvimento de São Paulo retiram delas a sua “vocação educacional”, comprometendo assim a chamada pesquisa pura, livre de interesses mercadológicos.


12. Esta é a única manifestação do tipo ocorrida na USP nos últimos anos?
Não. Em 2005 houve uma greve de pouco mais de 20 dias de funcionários e professores, que protestavam contra uma decisão do então governador Geraldo Alckmin de vetar uma medida que garantiria mais dinheiro para as universidades paulistas. Foi um movimento sem muita força, e que não resultou em nada. Já em 2004, houve uma greve maior e mais séria, de novo capitaneada por servidores e docentes, e apoiada por alguns estudantes. E novamente, o movimento era por mais verbas para a USP – negadas pelo governo. Antes desta, aconteceu na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) uma greve de alunos em 2002. Pela contratação de 300 novos professores, as aulas foram interrompidas e muitos estudantes chegaram a acampar por dias na avenida que margeia a faculdade. Conseguiram, ao fim, 92 novos docentes para a unidade. Por fim, em 2000 houve também uma grande greve de funcionários, professores e alunos, com direito até a uma curta e inócua invasão da reitoria. Com cinco paralisações nos últimos sete anos, já há quem defenda a inclusão de uma greve anual no calendário letivo oficial da universidade, de tão freqüentes que se tornaram estes movimentos.

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